IEC | Pós-graduação lato sensu PUC Minas

número 129 | 18/10/2021 a 18/12/2021

Fala, Professor!

Autismo e Deficiência

Autismo e deficiência, ponto instigante e polêmico que abordamos com muito cuidado no curso de especialização no IEC, denominado Abordagem psicanalítica do autismo e suas conexões. Nesse curso, a psicanálise conversa com vários outros campos de saber que se ocupam do autismo refletindo criticamente sobre todos os achados contemporâneos da ciência e mostrando o que a psicanálise pode fazer. Nesse contexto, é preciso relativizar a noção de deficiência, e esse é o meu convite a vocês já que, de um modo geral, o autista é tratado como deficiente no próprio documento brasileiro sancionado no final do governo Dilma, chamado de “Linhas de cuidado do portador do TEA (Transtorno do Espectro Autista)", que orienta todas a políticas públicas brasileiras sobre o autismo, incluindo-o no campo das deficiências, entre várias outras. Vale ressaltar aqui que esta orientação constante nas linhas de cuidado surge para garantir, legal e juridicamente, direitos dos quais o autista seria privado caso não se inscrevesse na forma de deficiência. Um exemplo é o direito ao acompanhamento de um monitor na escola.

Voltando ao meu convite. Por que eu digo que devemos relativizar esse conceito? Antes de mais nada, é preciso colocar que toda e qualquer deficiência precisa ser avaliada de maneira singular e que isso não impede a pessoa que a possui tenha  inúmeras qualidades, conhecimentos adquiridos, entre outras características.  

Bom, se tomarmos a média padrão de vários comportamentos e aquisições do desenvolvimento de uma criança, por exemplo, a cognição, a comunicação, a linguagem, a socialização... Dentro de um referencial padrão, de fato, o autista não corresponde, muitas vezes, a esse padrão preestabelecido. No entanto, ao conhecer os autistas e o que eles nos ensinam cotidianamente, observa-se que eles são capazes de muita coisa, sendo possuidores de habilidades específicas muito bem desenvolvidas em algumas áreas. E que, por vezes, eles conseguem uma produtividade de sucesso em várias áreas da vida em níveis muito maiores do que aqueles que estão na faixa padrão do desenvolvimento.

E como a psicanálise aborda essa questão? Pra nós, psicanalistas, os autistas são definidos como sujeitos que têm uma relação muito original com a linguagem, com o outro, com o corpo, e com o mundo. São sujeitos bastante originais e, nesse sentido, eles se diferenciam da maioria das pessoas ou daquelas que a gente poderia colocar como pertencentes a um padrão esperado de comportamento.E o que se passa com o autismo, porque ele é assim tão original? Sua maneira de pensar, sua maneira de ter acesso à linguagem, sua maneira de viver os afetos, tudo isso é absolutamente original para o sujeito autista. Então eles podem ter, por exemplo, competências específicas de alto nível, sendo capazes de operações matemáticas, ou no campo da ciência, das letras, dos números, da arte e da literatura. Eles podem ter uma performance muito alta e, no entanto, algumas atitudes mais simples da vida cotidiana se tornam, às vezes, angustiantes e difíceis. Mas o que a gente vê é que quando a gente respeita e acolhe o jeito original de ser do autista, ele evolui na sua singularidade e é capaz de conquistar autonomia, realização profissional, carreira. E são muitas as comprovações disso, seja por meio de autobiografias, pela prática com eles, pelos estudos e pesquisas.

Por isso, defendo a relativização do conceito e noção de deficiência: para que a gente não se surpreenda ao encontrar um autista com habilidades e competências superiores ao padrão ou daquilo que se considera norma padrão.

Porque o autista é assim, tão original? Porque ele sofre de uma angústia muito devastadora que se manifesta precocemente na vida, no tempo na aquisição da linguagem, na entrada no campo da comunicação e da linguagem. E pra se defender dessa angústia que desestabiliza o eu ou dificulta a própria estruturação e desenvolvimento do eu e, consequentemente, de todas as suas funções, a cognição, a socialização, a comunicação enfim, para se defender dessa angústia muito precoce, o autista se constitui e se faz de maneira solitária, dispensando um pouco a presença o outro, que lhe é bastante ameaçadora. Então para se defender de uma angústia desse tipo, ele estabelece uma relação muito diferente e singular com a linguagem, com os objetos, com o mundo e com as outras pessoas.

Então qual é a nossa proposta?

Acolher essa singularidade do autista. Acreditamos que a sua inclusão em qualquer que seja o ambiente suposto, seja a escola, a família, o ambiente social mais amplo, precisa respeitar e acolher o seu modo original de ser. Quando a gente consegue, de alguma maneira, ser dócil à maneira singular de ser do autista, conseguimos entrar em seu universo e ampliar as fronteiras do seu mundo de maneira a estabelecer bordas e trocas e fronteiras com o nosso mundo. Então, a prática psicanalítica com o autista tem esse ponto fundamental: acolher o seu modo de ser, toda sua originalidade, para que ele nos inclua no seu mundo tão singular e, a partir daí, possa consentir na influência que a gente pode exercer nesse seu espaço muitas vezes fechado, solitário e limitado, para progressivamente ampliar essas fronteiras.

A defesa autística, isto é, um modo de ser que constitui uma espécie de mecanismo de defesa contra uma angústia muito precoce e muito devastadora, é a sua maneira de ser. Nós chamamos de borda autística, quer dizer, a construção de um certo limite entre ele e o mundo ou ele e o outro, que é sustentado às custas de um modo diferente de ser. Para comprovar o que trago aqui, temos que lançar mão do testemunho e do convívio com os autistas. Os autistas escrevem, publicam, participam de documentários, escrevem autobiografias e esses testemunhos nos ensinam e nos explicam sobre essa maneira de ser. No caso da psicanálise, isso se torna mais robusto e volumoso a partir dos anos 1970, 1980, quando nos debruçamos sobre essa produção tão original dos autistas que começa a circular entre nós.

A divulgação do autismo e de suas produções nos meios de comunicação tem sido muito importante para que eles circulem entre nós. Antes disso, eles ficavam muito fora dos circuitos sociais, seja por algum constrangimento da família, ou outros motivos. Então, a política da inclusão, que hoje é sustentada inclusive pelo governo brasileiro e em vários outros países, nos permite um convívio maior com o autista e, portanto, um conhecimento maior de sua maneira de ser, de sua dinâmica psíquica, de sua estrutura. Vários campos do saber hoje – a própria psicanálise, e também a neurociência, a pedagogia, a medicina especializada –, vem se ocupando desse conhecimento e desse convívio com o autista de uma maneira muito interessante. Importante frisar que a noção de autismo não é nova e surge no início dos anos 1940 com o psiquiatra infantil americano, Leo Kanner, que fez a primeira descrição do autismo, mas será a partir do estudo dos casos e da pesquisa que ele fez e, sobretudo, a partir da convivência com os autistas contemporâneos é que a psicanálise vem evoluindo na maneira de abordar o autista, de conviver com ele e de ajudá-lo a sair do seu mundo tão fechado em si mesmo.

Sugiro, então, que vocês se aproximem desse universo a partir das obras dos próprios autistas. Há autistas escritores premiados, como o japonês Naoki Higashida, autor premiado e que tem um livro traduzido para o português, que se chama O que me faz Pular (2014, ed. Intrínseca). A obra traz, a cada capítulo, uma pergunta que ele, como autista, sempre ouviu das pessoas, como por exemplo: porque você não olha nos meus olhos? Ou: Porque você fica pulando? E ele vai, aos 13 anos de idade, respondendo a essas perguntas sobre o que aparentemente constitui uma perturbação, uma patologia, algo até certo ponto bizarro, comparando com o padrão de comportamento, e que na verdade implica em toda a maneira de ser do autista. Além dele, cito Daniel Tammet, um inglês que vive hoje na França. Seu livro autobiográfico, Nascido em um dia azul (2007, ed. Intrínseca), é sua primeira obra. Lá, ele narra todo o seu sofrimento por causa desse modo fechado, que não encontra meios para se comunicar, mesmo que ele tenha sido desde criança muito inteligente e sensível à família, ao ambiente, ao convívio com os amigos.  Tammet consegue, por meio da literatura, ampliar as bordas do seu mundo, sair desse fechamento e se tornar um escritor famoso.

Outro exemplo é a americana Temple Grandin, que já veio ao Brasil várias vezes. Ela trabalha no campo da zootecnia, é professora universitária e pesquisadora, autista, que dá entrevistas sempre reconhecendo como mudou sua vida por meio do reconhecimento do seu trabalho em todo o mundo. Há um livro dela, que se chama Uma menina estranha (2009, Cia das Letras), que também é autobiográfico, e outro, chamado O Cérebro do Autista: Pensando através do espectro (2013, ed. Record), que foi transformado em filme. Há também o livro Meu mundo Misterioso: testemunho excepcional de uma jovem autista (2012 Ed. Thesaurus), da Donna Williams, uma autista que também conseguiu uma grande evolução e se tornou uma poeta muito interessante.

O documentário chamado Life, Animated (2016, direção Roger Ross Williams), baseado no livro do jornalista Ron Suskind sobre seu filho autista Owen, é indispensável. Belíssimo e premiado, o documentário é uma lição sobre o autismo, uma excelente aula sobre a história de Owen, que mais ou menos aos dois anos de idade, se fecha para o mundo, para o contato, para a vida afetiva com seus pais e com todos. Sua família, sobretudo o pai e a mãe, vão conseguindo se aproximar do mundo criado por ele e, assim, auxiliam-no a ultrapassar essas fronteiras nas quais ele se fecha para se defender de um mundo que, em sua mente, parecia muito ameaçador. O documentário conta a história de Owen desde os dois até os dezoito anos, quando ele participa de um congresso e faz seu testemunho de como ele saiu do autismo.

Sair do autismo não significa dizer que o jovem ou a criança vá deixar de ser autista, mas diz dos ganhos muitos significativos do ponto de vista afetivo, social e na relação com o outro, de maneira a apaziguar sua angústia. Quando a pessoa autista é acolhida e escutada, pode encontar outras maneiras de se defender, que não comprometam tanto a socialização, o uso da linguagem, a comunicação e a formação da sua imagem corporal.

Então, por tudo isso é que eu penso ser absolutamente recomendável relativizar essa noção de deficiência. Para que a gente possa acolher a singularidade do autista, não como um defeito, mas como uma maneira original de ser, possível inclusive de sofrer alterações, metamorfoses de maneira que o autista tenha um modo de vida mais satisfatório em todas as áreas de sua vida.

Incluir o autista em nossas vidas, no convívio, na escola, junto à família e na sociedade de um modo geral, significa aceitar seu modo original de ser. É quando aceitamos que o autista consente, na nossa presença, sem se angustiar: consente em nossa ajuda, consente em fazer parcerias para que ele compartilhe do convívio da vida em sociedade. As práticas que porventura não aceitam a maneira original de ser do autista -  e isso significa aceitar sua linguagem muito original, sua relação com os objetos de sua afinidade, e até mesmo seus momentos de isolamento –, e desejam enquadrá-lo nos padrões de comportamento considerados normais acabam configurando-se em atitudes desrespeitosas perante sua originalidade. Essa forma de proceder não traz muitos avanços e a consequência desse não acolhimento é a promoção ainda maior de seu isolamento, acirrando a sua defesa contra as causas de sua angústia e sua ansiedade, que é o contato com o outro. Acolher a sua originalidade é a forma mais eficaz de pensar na inclusão, que permitirá ao sujeito autista uma ampliação de seu mundo de maneira a romper com as fronteiras que ele estabelece entre ele e o outro.

  

Suzana Faleiro Barroso é professora, coordenadora do curso do IEC PUC Minas, Abordagem Psicanalítica do Autismo e suas Conexões. Membro do Observatório Americano sobre o autismo, a professora atua também na graduação, além de coordenar projeto de estágio na PUC Minas voltado para autistas e suas famílias.

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