IEC | Pós-graduação lato sensu PUC Minas

número 115 | 22/10/2019 a 22/11/2019

Fala, Professor!

Ortotanásia nas unidades de terapia intensiva: percepção dos enfermeiros

Júlio César Batista Santana¹Bianca Santana Dutra²Janaína Maria Machado Carlos³Jenniffer Kelly Assis de Barros4

 

No decorrer do século XX, os avanços técnicos e científicos ampliaram o conhecimento da fisiolo­gia humana e foram, portanto, determinantes para o prolongamento da vida. No entanto, nem sem­pre esse prolongamento acontece com qualidade, evidenciado pelas dificuldades de tratamento de pacientes terminais em ambiente doméstico, o que favoreceu a morte institucionalizada, em unidades de terapia intensiva (UTI). Nas instituições hospi­talares, as UTI são espaços que apresentam recursos tecnológicos e humanos destinados ao atendimen­to de pacientes graves ou com risco de morte que dependem de assistência de enfermagem e médica contínua.

Essas unidades de cuidado ininterrupto con­tam com sistema de plantões, que funcionam com rodízio de equipe. Isso interfere na criação de vín­culo entre profissional e paciente, além de gerar grande mecanização do cuidado. Por isso, pela am­pla “capacidade tecnológica” forma-se percepção equivocada das UTI, o que estigmatiza os profissio­nais que nela atuam como frios e indiferentes na relação profissional-paciente-família, como se os cuidados da área fossem direcionados às máquinas, não aos doentes.

Incontestavelmente, as máquinas compõem o cuidado em terapia intensiva, uma vez que garan­tem o suporte avançado de vida que pacientes em estado crítico necessitam, sendo impossível pensar nessa estrutura sem os devidos recursos tecno­lógicos. Porém, o que define se uma tecnologia desumaniza o cuidado não é a tecnologia propria­mente dita, mas sua influência sobre os indivíduos e a significação do que é humano em cada cultura. É necessário compreender que recursos tecnológicos representam em vários momentos a comunicação entre paciente crítico e equipe multidisciplinar, pois identificam situações de risco e evolução do pa­ciente pelo monitoramento contínuo de seus sinais vitais.

A tecnologia por si só pode ser um fator que humaniza, mesmo nas arenas mais tecnologicamen­te intensas de cuidado em saúde. Exemplo claro disso é o cuidado oferecido ao paciente crítico ou terminal. Nesses casos, as tecnologias (infusão ve­nosa com bomba de infusão, monitoramento de funções vitais etc.), aliadas ao cuidado prestado pelos profissionais, proporcionam conforto e bem­-estar, colaborando para recuperação da saúde ou morte digna e tranquila.

Permitir que o paciente morra digna e tran­quilamente é uma das principais preocupações da terapia intensiva, que traz questões polêmicas do ponto de vista bioético. Entre elas destaca-se a limitação de esforços terapêuticos (LET), muito fre­quente em UTI devido ao perfil dos pacientes da área. Essa limitação pode ser entendida como con­duta que restringe ações médicas devido a doenças ou traumas. Ou seja, trata-se da suspensão do in­vestimento terapêutico diante da impossibilidade de recuperação do doente e da iminência da mor­te. São vários os fatores considerados para definir o paciente em LET, destacando-se três pontos: o prog­nóstico da doença, suas comorbidades e a futilidade terapêutica.

Após a definição da conduta de LET, entre as terapias mais comumente suspensas ou recusadas estão ressuscitação cardiorrespiratória, adminis­tração de drogas vasoativas, métodos dialíticos e nutrição parenteral, procedimentos muito invasivos, não justificáveis em situações como essa. No atual panorama, a equipe multidisciplinar deve se orga­nizar e oferecer a esse tipo de paciente cuidados paliativos que proporcionem alívio do sofrimento e dignidade durante o processo. É importante salientar que, quando o paciente é considerado em LET, as limitações terapêuticas são relacionadas à função curativa, e não a ações que gerem conforto e alívio da dor, preservando a integridade do paciente.

Para que a equipe multidisciplinar aceite essa limitação é preciso que entenda a finitude humana como processo natural e cronológico da vida, além de compreender as questões legais dessa ação. Porém, esse entendimento não é simples, pois a morte coloca o profissional enfermeiro diante de sua própria finitude, gerando conflito interno, dúvi­das sobre a eficácia, os objetivos e a relevância de seus cuidados . Adicionalmente, muitos médicos insistem em continuar o tratamento curativo devi­do ao receio quanto a consequências legais, mesmo havendo orientações claras a respeito do assunto, tanto provenientes da Associação Médica America­na 12 quanto do Conselho Federal de Medicina.

Em decorrência dessas dificuldades de aceitação da limitação dos esforços curativos, a dis­tanásia é praticada. Considerada obstinação ou futilidade terapêutica, constitui assunto polêmico no campo da bioética, sendo descrita no dicioná­rio da bioética como morte difícil ou penosa, visto que sua prática prolonga o sofrimento do paciente terminal e não acarreta qualquer benefício terapêu­tico. Essa conduta fere os direitos humanos, leva a tratamento degradante e desrespeitoso, protela a vida biológica e prejudica a qualidade na vida e no morrer. Diante da impossibilidade de recupera­ção, a adoção persistente de tratamentos invasivos que prolongam a vida resulta da negação da morta­lidade, que desconsidera que a morte é parte da vida e que o tratamento deve ser sempre digno e humano.

Nesse contexto, o tratamento passa a ser considerado em muitos casos desproporcional, es­pecialmente quando apenas prolonga o sofrimento físico e psicológico do paciente. Siqueira-Batista questiona quando se deve passar dos cuidados curativos para os paliativos, uma vez que o doente terminal merece sempre benignidade e respeito. Os cuidados paliativos estão em contraste com o sofrimento causado pela distanásia. Consistem na assistência proporcionada por equipe multidisci­plinar, objetivando melhorar a qualidade de vida do paciente e de sua família perante doenças que ameacem a vida, por meio da prevenção e alívio do sofrimento e identificação e tratamento precoce da dor e demais sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais.

Os cuidados paliativos nas UTI são classifica­dos em três fases. A primeira delas diz respeito aos cuidados para alívio do desconforto causado pela doença e tratamento intensivo e visa a recupera­ção total do paciente. Nesse caso, a morte é pouco provável. A segunda enfatiza cuidados para promo­ver conforto físico e psicoemocional, empregando, quando necessário, recursos que modifiquem a doença, diante de previsão de morte em dias, se­manas ou meses. Por fim, na terceira fase há o reconhecimento de que todas as propostas terapêu­ticas e curativas não dão resultado. A morte é aceita como fato e dessa forma os cuidados paliativos en­fatizam a qualidade de vida e conforto do paciente e da família.

A partir do conhecimento dessas fases, é fun­damental que cuidados paliativos baseados nas noções de respeito e dignidade humana sejam prestados no ambiente de terapia intensiva. Isso objetiva humanizar a assistência, contribuir para o verdadeiro sentido do cuidar e provocar empatia no profissional. A humanização em terapia intensiva propõe resgatar as características humanas como parte constitutiva do funcionamento hospitalar e busca a valorizar o paciente e sua família. O cuida­do humanizado enfatiza a visão holística do paciente pela equipe multidisciplinar, visto que contempla to­das as suas necessidades e contribui na medida do possível para melhorar sua qualidade de vida.

A humanização em unidades de terapia inten­siva deve condicionar a atuação da equipe. Nesse contexto, a ortotanásia surge como complemento dessa assistência “humanizadora”. Por significação etimológica, ortotanásia deriva do grego orthos, que significa “correto”, e thanatos, que significa “mor­te”. Ou seja, morte no momento apropriado com o devido respeito aos limites da vida. A ortota­násia também pode ser considerada morte natural, favorecendo a aceitação da circunstância humana perante a morte, sem abreviar nem prolongar o sofrimento, apenas proporcionando, na medida do possível, qualidade de vida e alívio do sofrimento de modo geral.

Essa conduta permite ao paciente sem pos­sibilidade de cura entender a finitude humana e morrer em paz, uma vez que garante dignidade no processo da morte. Contribui igualmente para que todos os envolvidos nesse processo – pacien­te, equipe, família, amigos – aceitem a morte mais tranquilamente. Isso porque, nessa visão, a morte não configura doença a ser curada, mas o fim do ciclo da vida. Nessa perspectiva, destaca-se que, quando em assistência a indivíduo em condições clínicas irreversíveis ou terminais, a equipe médica deve evitar procedimentos desnecessários e medi­das terapêuticas fúteis.

Deve igualmente pôr em prática todos os cui­dados paliativos necessários e respeitar a vontade do paciente ou, na impossibilidade de este expres­sar sua preferência, as decisões dos familiares. Cumpre, assim, o princípio ético mais importante da medicina – a não maleficência. Desse modo, questiona-se: qual a percepção dos enfermeiros a respeito da prática da ortotanásia nas unidades de terapia intensiva? O que esses profissionais, que vi­venciam essa realidade cotidianamente, entendem dessa prática? Como essa realidade é enfrentada?

Diante de tal questionamento, ressalta-se que este artigo tem como objetivo compreender o sig­nificado do processo de morrer com dignidade em unidade de terapia intensiva na percepção dos en­fermeiros, considerando o perfil dos pacientes dessa área e a incidência de situações em que ortotanásia se aplica. Visto que a ortotanásia é tema que apenas recentemente passou a ser questionado pela bioética, acredita-se que esta pesquisa contribuirá para melhor compreender a percepção dos enfermeiros que atuam nas UTI e, consequentemente, favore­cer a qualidade de vida do paciente no processo da morte e do morrer.

 

¹Professor doutor. Coordenador de cursos da área de Saúde do IEC PUC Minas 
². Mestre
 – Secretaria Municipal de Saúde de Sete Lagoas, Sete Lagoas/MG 
³. Graduada – PUC Minas, Belo Horizonte/MG, Brasil. 
4. Graduada – PUC Minas, Belo Horizonte/MG, Brasil.

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