Durante a abertura da Semana de Ciência, Arte e Política (Scap) da PUC Minas São Gabriel, no dia 8 de setembro, o reitor da PUC Minas e bispo auxiliar da Arquidiocese de Belo Horizonte, professor Dom Joaquim Giovani Mol Guimarães, lembrou que a pandemia do novo coronavírus evidenciou as desigualdades que já existiam e que eram alarmantes. E, para além disso, escancarou as incertezas de um futuro. "Quantos fins de mundo a gente tem fôlego para enfrentar? É certo que todos nós habitamos uma casa comum – essa expressão ganhou o mundo porque o Papa Francisco a divulgou muito – é uma casa para todos, de todos, mas uma casa que reconhece que tudo está interligado, não só a vida humana, mas toda forma de vida. Se somos hostis com o planeta, ele revida. Também se torna hostil, porque ele se defende. Precisa se defender. Porque ele se defender significa defender a vida".
A conferência de abertura da 12ª edição da Scap contou com a apresentação de Ailton Krenak, considerado uma das maiores lideranças do movimento indígena brasileiro e autor de diversos livros. Com o tema Entre assombros e sonhos, lampejos de primavera, Ailton se dirigiu a uma geração que "vai enfrentar o desafio de dar conta das mudanças climáticas, das migrações e das grandes incógnitas que vamos enfrentar do ponto de vista dessa sociedade global que nós nos constituímos e que aprendemos, no século 20, a pensar como uma humanidade". No entanto, de acordo com Krenak, fechamos o século com o anúncio de que a Terra, nossa casa comum, tem limite.
Para Ailton, a geração de 15 a 30 anos, que recebeu um mundo projetado há 50 anos pelos antepassados, não teve escolha e precisará lidar com todos os desafios. "Se nós fomos animados a pensar que estávamos constituindo uma humanidade planetária, global e que a ciência e o conhecimento iam nos dar as condições para fazermos a gestão da vida nesse planeta, há muito tempo, a gente perdeu essa expectativa. Porque estamos diante de diversos dilemas como o de refugiados. O Brasil, assim como outros países, precisa se preparar para o grave dilema dos refugiados. Temos que ser capazes de pensar em como criar infraestrutura e condições de acesso a todos aqueles que constituem a nossa comunidade, àquilo que é essencial à vida", explica.
Ailton Krenak faz coro a essa fala de que a Terra responde e ainda afirma que, de fato, a Terra é um organismo vivo, observado pelos povos indígenas, pelos cientistas do painel do clima, "o planeta tem a potência de nos corrigir quando formos abusados com a vida aqui na Terra. A vida é um dom maravilhoso. A gente não pode imaginar a vida como alguma coisa útil ou utilitária. A vida é um dom que a gente pode fruir e experimentar a cada dia. A vida deveria ser experimentada como uma dança cósmica, e não como alguma coisa útil", defende.
Se é possível perceber no cotidiano como o tempo tem passado rápido, para Ailton, essa questão é mais aguda e tem mais consequências quando pensamos o tempo em relação a essa casa comum em que vivemos, já que tudo o que acontecer com a Terra vai afetar a cada um de nós. "O tipo de consumo e o tipo de disputa que houve entre os blocos socialista e capitalista poderiam nos levar a um rápido fim de mundo. Digamos que era o fim de mundo anunciado no final do século 20. Nós conseguimos conviver com narrativas sobre fim de mundo em quase toda a metade do século 20 devido a relações conflitantes que os blocos e países alimentavam entre si. O anúncio da globalização no final da década de 80 e 90 animou muita gente a pensar que nós iríamos alcançar finalmente aquela ideia de uma humanidade capaz de ter responsabilidade comum sobre a nossa casa comum". Mas não foi isso o que aconteceu. "Nós não conseguimos ainda configurar essa humanidade prometida no cinema, na literatura, nas artes, na política. A maior parte das mudanças politicas anunciava a promessa de um mundo melhor. Um mundo melhor que coubesse as nossas diferenças, que coubessem as diferentes escolhas que nós tínhamos que fazer. Mas nós fomos todos engolfados por uma perspectiva do mercado e do consumo que nos transformou numa humanidade desigual e que consegue consumir dois planetas a cada ano".
Ailton afirma que o século 20 foi muito enganoso para introduzir o consumo em todas as regiões do planeta. "O padrão de consumo se tornou o mesmo. Todo mundo comendo comida empacotada, processada, super processada, perdendo a perspectiva de onde vem aquilo que nós comemos e bebemos. A água passou a ser uma commodity e, em muitas regiões do planeta, vem sendo disputada de uma maneira tão brutal que nós chegamos, no caso do Brasil, a pôr em risco nossa soberania com relação ao suprimento de água potável para as comunidades ribeirinhas. Como exemplo, a Bacia do Rio Doce, calcinada pela lama da mineração, deixou milhares de famílias na margem desse maravilhoso Rio Doce. Ele está em coma pela lama da mineração", lamenta Ailton, que está em sua aldeia, às margens do Rio Doce.
Dom Mol, em sua fala de abertura, pediu a Ailton para ensinar a todos uma forma de cuidar uns dos outros, a cuidar dessa casa comum e de como juntar a ciência produzida na Universidade com a sabedoria dos ancestrais, com a sabedoria popular. Ailton ressaltou sua alegria quando o Papa Francisco destacou a importância de se resgatar a ancestralidade. "Eu fiquei muito feliz, porque, de alguma maneira, a narrativa do século 20, principalmente a narrativa do ocidente, fez uma escolha tão individualista que as gerações foram se descolando umas das outras e a própria ideia da ancestralidade ficou como um legado de povos remanescentes – os afrodescendentes, os povos ameríndios, os povos indígenas. E ancestralidade é o que torna todos humanos. Não é uma perspectiva para além do dia em que vivemos hoje, mas é tudo o que nós somos de memória, tudo o que somos de perspectiva, de subjetividade e de sonho. Então, se estamos vislumbrando primaveras, que a primavera seja também produzida para além de buscar a paisagem. Que a primavera seja produtiva em nós", explicou.
E, para concluir, deixou um recado a essa geração. "Vocês, jovens, aprendam com seus pais, avós, tios. Para além de aprender na Universidade, aprendam com os seus ancestrais. E, nesse sentido, eu faço coro ao Papa Francisco. Resgatem seu sentido de ancestralidade. Não ande sozinho pelo mundo. O mundo é um lugar para ser compartilhado. E a vida aqui na Terra pode ser boa, mas vai depender do tipo de pessoa que nós nos constituirmos".
Anais da Scap
Também durante a abertura da Scap 2020, o diretor acadêmico da PUC Minas São Gabriel, professor Cláudio Listher Marques Bahia, destacou os 20 anos da Unidade e lançou os anais da Scap 2019 que já estão disponíveis no site do evento. De acordo com o professor, a Scap realiza debates acerca de questões contemporâneas e fundamentais para a formação humana não só dos alunos como também de toda a comunidade acadêmica e a sociedade. "A Scap avigora o que a PUC Minas apresenta como um dos seus princípios norteadores pedagógicos: o domínio conceitual de formação de múltiplas capacidades e de condutas intelectuais, inovadoras e favoráveis à autonomia intelectual de seus membros, pois é necessário garantir a formação política e ética da comunidade acadêmica", diz.
A Scap 2020 trouxe a pandemia do novo coronavírus para a discussão. "Neste ano, a transversalidade foi facilmente reconhecida desde o primeiro momento. Todos os dilemas, indagações e reflexões faziam referência à pandemia do novo coronavírus e à perplexidade diante do número de mortos e das transformações na vida de todos deste planeta. A pandemia de Covid-19 é o maior desafio do nosso tempo. E, com ele, experimentamos, de maneira inédita pela extensão e intensidade, a percepção de que todos vivemos em um só planeta", explicou o professor Cláudio.
A 12ª edição da Scap aconteceu de forma totalmente online pelo canal oficial da PUC Minas no Youtube.