Agenda PROEX
Número 101 | 27 de setembro a 3 de outubro de 2021

Seminário de Extensão 2021

Eugênio Bucci reflete sobre os inimigos da democracia


“A democracia é a melhor forma de conviver. No entanto, existem forças que a combatem, e a combatem de forma sanguinária, como aprendemos com a história. Essas forças se põem como inimigas da democracia porque, por motivos diversos, não conseguem conviver com a liberdade, a alegria, o fluxo desimpedido do desejo, o amor e a felicidade”, afirmou o jornalista Eugênio Bucci, durante a conferência A Democracia e seus Inimigos, que abriu as atividades do Seminário de Extensão 2021 na última quarta-feira, 22 de setembro.

Para o doutor em Ciências da Comunicação e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA – USP), são muitos os descaminhos que levam os seres humanos a nutrirem ódio pela democracia e a se organizarem com o intuito de impedirem aqueles que tentam construir uma sociedade solidária e livre, algo que precisa ser construído no país. “Nós precisamos estar atentos. Não podemos perder a esperança e precisamos superar esse momento com a consciência de que nosso método não é a guerra e a violência. O nosso método é a palavra, a abertura de espírito, a solidariedade, a fraternidade e a força da união. É assim que vamos proteger nossa democracia”, assegurou.

Bucci pontuou que aqueles que cultivam a democracia não têm inimigos, e que essa é uma lição difícil de aprender, mas indispensável. “Dentro da democracia temos adversários que podem estar juntos a nós e amanhã podem se separar. Nós vamos divergir, vamos disputar espaço, seja no parlamento, na universidade, na reunião da vizinhança, mas vamos conviver estando de acordo com as formas que temos de discordar”, argumentou, ao afirmar que a democracia é uma experiência precária, frágil e vulnerável, especialmente no Brasil atual.

“É muito comum encontrar interlocutores que falem da democracia como se ela fosse um dado da natureza, como se fosse o sol que todos os dias ilumina o chão pelo qual nós caminhamos. A democracia é um trabalho, é uma construção, e não é garantida, a não ser que existam seres humanos comprometidos com ela”, disse. Para o docente, sem o fator humano a democracia se esvazia e enfraquece. “Se não estiver bem enraizada, pode ir morrendo aos poucos, até um ponto em que não lhe reste mais força para resistir ao cerco que, porventura, lhe sobrevenha”.

O professor destacou que a fragilidade deste sistema não é característica dos tempos atuais. A experiência grega, que teve seu apogeu no século V a.C., mas que durou cerca de 20 anos apenas, já demonstrava sua falta de solidez. “Platão observava certo descrédito na democracia. Ela não dura de modo exuberante e fulgurante durante todo o tempo e é de lá que nós temos algum aprendizado”. Ele lembrou que as experiências iluministas no século XVIII abriram um caminho pelo qual as sociedades inspiradas pelo movimento intelectual construíram instituições que, aos poucos, foram se aproximando de um ideal democrático, mas, mesmo nos países ditos de tradição democrática mais sólida, a democracia é uma construção recente e frágil. “Um exemplo é o direito das mulheres ao voto, que só começou a ganhar concretude no século XX. Na França, após a Segunda Guerra Mundial; e na Suíça, após a década de 1970. O reconhecimento de direitos é algo que tardou a acontecer”, ilustrou.

Bucci ressaltou que no Brasil a democracia ainda está sendo construída, com dificuldades, e é uma experiência que não alcança a totalidade da população. Essa observação fica visível ao observarmos que os direitos à educação e à saúde, que são direitos que constituem uma ordem democrática e que deveriam ser materialmente assegurados, não alcançam a população em sua totalidade. Assim como o direito à segurança, que não é cumprido quando tantas comunidades sofrem com a violência em diferentes modalidades. “Um país assim não pode ser considerado democrático. Podemos dizer que é um país que, a duras penas, tenta construir uma sociedade inclusiva e de plenos direitos, mas, somos obrigados a reconhecer que estamos longe de alcançar esse ideal. Uma democracia que convive com o elitismo, que convive com a desigualdade em graus selvagens como temos no Brasil, além de ser incompleta, é uma democracia vulnerável ao apelo e às chantagens dos inimigos dessa mesma democracia. Isso nos fragiliza”, criticou.

Ao apontar os inimigos da democracia, Bucci identifica duas vertentes que resumem esse cenário hostil. A primeira delas é a herança de uma tradição autoritária que se reflete no presente em lideranças que não suportam a liberdade. “Existe algo que vem do passado num fio condutor de muita violência. Esse fio vem atravessando a história e se expressa por meio, por exemplo, do cesarismo, bonapartismo, kaiserismo, czarismo. Títulos que concentram uma densidade de poder cego, implacável e de grande espectro”, afirmou, ao analisar os reflexos desses períodos na sociedade contemporânea.

Um exemplo atual é Donald Trump que, a exemplo do bonapartismo que prezava por uma relação próxima com as massas, governava e sabotava as instituições pelo Twitter. “E Trump deixou imitadores por aí, alguns perto de nós, que imaginam poder sabotar as instituições pelas redes sociais e em comícios encenados. Isso é um traço que vem do bonapartismo, do século XIX”. Bucci pontuou, entretanto, que o problema não são as tecnologias digitais propriamente ditas, mas a forma de propriedade que as organiza e faz delas uma ferramenta eficiente para as pregações antidemocráticas. “A tecnologia não é ruim, mas esse uso acoplado, a relação de propriedade que hoje governa boa parte da tecnologia cria, sim, um traço problemático na nossa cultura política. E a gente tem visto isso por toda parte”.

Outra tradição histórica que afeta a democracia nos dias atuais é o fascismo, que se reflete na sociedade em traços como o machismo e o militarismo. “O intelectual é um tipo indesejável, já o militar é o suprassumo da masculinidade e da plenitude do homem. Isso aparece no Brasil com o enaltecimento do modelo das escolas militarizadas. O propósito não é ensinar, é enfraquecer a liberdade, o regime de exploração dos sentidos, a busca de outros campos de realização plena do ser humano”, afirmou.

Essa distorção é análoga ao que acontece atualmente com a polêmica que coloca em xeque a credibilidade da urna eletrônica. “A propaganda contra a urna eletrônica não tem o propósito de questionar a sua tecnologia, tem o propósito de enfraquecer todo o sistema eleitoral no Brasil. A urna eletrônica é apenas um pretexto para dizer que ela é sinônimo de fraude, quando não há nenhuma prova nem indicação de que tenha ocorrido fraudes. Em contrapartida, são profusas e incontáveis as fraudes que ocorriam com o voto impresso”. Para ele, a intenção dos que fazem propaganda contra a urna eletrônica não é a verdade factual, mas, enfraquecer a reputação e a credibilidade do sistema eleitoral. “É jogar descrédito sobre todo o edifício de regras da democracia”, afirmou. 

A outra vertente que Bucci aponta como inimiga da democracia é “o estado atual das comunicações capturadas pelos conglomerados monopolistas globais que criam esse ambiente estranhamente favorável às causas obscurantistas. Quem são esses conglomerados? São as chamadas Big Techs”, afirmou, ao citar as cinco maiores – Amazon, Apple, Facebook, Google e Microsoft – que, juntas, valem cerca de dez trilhões de dólares, segundo ele. “É um grau impressionante de concentração de poder e de capital que não é, propriamente, uma falange inimiga da democracia, mas propicia uma cultura e um ambiente que favorece os autocratas. Em vários países existe uma simbiose entre as chamadas plataformas sociais e os piores discursos de intolerância e de ódio”, disse, sobre o fato de que o centro da economia capitalista se tornou a comunicação, superando a indústria petrolífera e o setor financeiro.

“E qual é o negócio dessas empresas? É explorar o olhar, explorar o trabalho de multidões que imaginam que estão se divertindo nas redes sociais quando, na verdade, estão produzindo signos e, com isso, se cria esse valor impressionante. Pensem que um Facebook da vida não contrata digitadores, redatores, fotógrafos, cinegrafistas, roteiristas, atores. Tudo isso quem faz são os chamados usuários, o mesmo nome que se dá aos consumidores de drogas”, observou.

Para o comunicólogo, a gravidade dessa questão é que essa produção de conteúdo não passa pela mediação do pensamento, o que se torna um terreno propício para a desinformação, a intolerância e o discurso de ódio. “O que conecta essas multidões nessa indústria não é a razão, não é a mediação tão própria da política moderna. São identificações que Freud chamou de ligações libidinais, que não passam pela compreensão, pela lógica, pela construção de argumentos, mas, apenas pelo sentimento. É nesse ambiente dos conglomerados que prosperou vertiginosamente o discurso do obscurantismo e do ódio. É com isso que eu faço a combinação entre esse cenário da superindústria e essas tradições autoritárias. Essas duas vertentes se encontram e geram essa grande ameaça que cresce aos nossos olhos e que vem enfraquecendo a democracia em vários lugares do mundo”, concluiu.

Para Bucci, é possível superar essas ameaças, mas, para vencê-las, é necessário união e articulação, tanto social quanto política. “Nós não podemos permitir que nosso desânimo e nossa desesperança se transformem em aliados das forças que querem destruir a democracia. Nós teremos que ter no Brasil atos unificados de defesa da democracia e de protesto contra as lideranças autoritárias, o discurso de ódio, o preconceito, a intolerância e essa fraude industrial poderosa para destruir a democracia por meio da desinformação. Se nós não formos capazes de estabelecer alianças de defesa da democracia, o trabalho dos que querem acabar com a democracia será um trabalho mais fácil do que deveria ser”.

Após a explanação, ele respondeu a perguntas e comentários de docentes e discentes que acompanharam remotamente a conferência, que foi mediada pelo professor Mozahir Salomão Bruck, diretor da Faculdade de Comunicação e Artes (FCA) e secretário de Comunicação da PUC Minas.

O pró-reitor de Extensão da PUC Minas, professor Wanderley Chieppe Felippe, ressaltou a relevância do seminário “ao propor uma temática que diz respeito não só ao contexto político atravessado pelo nosso país, mas à vida de todos nós” e agradeceu ao professor Eugênio Bucci por aceitar o convite para proferir a conferência de abertura, sobre “um tema de extrema relevância em um cenário de crise sanitária agravado pela pandemia, crise política, econômica, social, ambiental, cultural, ética, crise nas áreas de educação e de saúde, produzindo, nesta mesma semana, diante de representantes de grande parte dos países do nosso planeta, reunidos em assembleia, uma completa falta de credibilidade em relação ao nosso país. O tema A Democracia e seus Inimigos não poderia vir mais a propósito”, disse.

Esperançar e democratizar

Professor Wanderley destacou que o tema desta edição do seminário, Do Substantivo ao Verbo: esperançar e democratizar, foi inspirado no patrono da educação brasileira, cujo centenário é comemorado este ano. “Paulo Freire observava que a palavra esperança tem, para muitos brasileiros, o sentido de esperar que as coisas aconteçam. E ele acreditava que é preciso agir, e não esperar passivamente. Daí o acréscimo dessa letra, transformando substantivo em verbo. Ou seja, buscar, ir atrás, não desistir, acreditar, começar um movimento para a mudança. A extensão universitária acredita na possibilidade de transformação da sociedade, no exercício responsável da cidadania, da prática do poder criador do ser humano, da esperança como postura ativa e, exatamente por isso, as ações de extensão não são feitas para as pessoas, mas, junto com as pessoas, suas comunidades e suas instituições, na busca coletiva de soluções e melhores condições de vida. O nosso seminário é um convite ao debate, na perspectiva da superação da desesperança e da indiferença em um claro enfrentamento ao discurso de ódio. Venham esperançar conosco”, convidou.

O seminário prosseguiu na quinta-feira, 23 de setembro, com mesas-redondas e rodas de conversas, além da Mostra de Extensão, que também integra a programação. Foram 60 trabalhos – entre artigos, relatos de experiências e resumos expandidos – apresentados durante o evento, selecionados entre quase 200 propostas.

Assista a conferência de abertura e as demais atividades, na íntegra, no canal Extensão PUC Minas no YouTube.