IEC | Pós-graduação lato sensu PUC Minas

número 121 | 01/06/2020 a 01/07/2020

Opinião

A pergunta, feita pelo professor Flávio Senra, traz reflexões acerca do atual momento e elabora pensamentos e pontos de vista para as pessoas acerca do mundo pós pandemia. Confira o artigo do professor do Departamento de Ciências da Religião da PUC Minas.

Quem pode enxergar o abismo?

Flávio Senra

 

Muito se tem falado de que o tempo da pandemia favorecerá mudanças. Certamente, não parece haver retorno àquela normalidade de antes. Espera-se que saiamos de alguma maneira transformados dessa experiência. Contudo, temo que as mudanças nos modos de operar a vida não cheguem a colocar em questão o sistema de poder que governa o mundo, mesmo com a propalada crise do capitalismo global.

Entre o que reconhecemos ser mudança e o que é o modelo da permanente exploração da vida no governo do mundo, vamos sendo atravessados pelas consequências da pandemia. E com muitas perguntas, certamente. Que humanidade seremos? Que futuro construiremos? Careço hoje da fé de mais de dez mil anos no otimismo do bem. Creio que somos os responsáveis pela criação do mundo nada ideal, desse mundo que coabitamos.

Com esse princípio da radicalidade da responsabilidade humana por seus mundos criados, todos finitos, é que me ponho a refletir sobre o caminho que trilhamos até essa situação de pandemia.  

Como animais humanos produzimos e mantemos em funcionamento um sistema baseado na exploração desenfreada dos recursos e das vidas do planeta. Devemos estar cientes de quantas enfermidades potencializamos com o extermínio de nossa biodiversidade, com a ruptura com os saberes tradicionais e com o ataque frequente à natureza que supõe o nosso projeto moderno. Ninguém pode ser considerado inocente nesse espetáculo de horror.

O sistema global, alimentado com o nosso padrão de consumo, avança produzindo concentração da renda para poucos ao custo do extermínio dos povos originários, das populações das periferias, das vidas invisibilizadas de crianças, idosos, pessoas negras, mulheres e lgbtqi+.

O vírus que nos sonda advém nesse contexto, ele é elitista e discriminador, ele traz consigo o DNA do nosso sistema-mundo-exploração, o mesmo que cobra desde sempre muitas vidas, vidas pobres, vidas passíveis do desprezo da elite do capitalismo neoliberal e do capitalismo estatal. Com a pandemia, temos potencializado o extermínio dos que são considerados, por esse sistema de poder, como os menos úteis para o mercado, um ônus para o Estado: pessoas idosas, pobres - negros e negras em sua maioria, povos indígenas, migrantes.

Penso que devemos pensar a pandemia, uma enorme crise sanitária, também sob o viés da crítica ao sistema capitalista global. A crise sanitária é, nesse sentido, coadjuvante da pequena política que nos governa, uma política colonizadora, baseada na exploração dos corpos vulneráveis. Não há saída, se houver saída, sem que procuremos criar formas alternativas e integrativas de vida e de organização social. Não faltam exemplos de projetos de economia solidária, modelos de gestão colaborativa e de práticas sustentáveis dos povos tradicionais. A grande política no pós-pandemia está desafiada a defender o respeito para com a biodiversidade, uma política comprometida com os direitos humanos e com a humanidade das minorias étnico-raciais e de gênero. Não há segredos nem idealidades nessas alternativas. Que o tempo seja favorável a um novo projeto axiológico para a humanidade.

 

 

 

Boletim produzido pela Assessoria de Comunicação da Diretoria de Educação Continuada da PUC Minas

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