IEC | Pós-graduação lato sensu PUC Minas

número 117 | 10/02/2020 a 08/03/2020

Destaque

BH e os desafios de uma cidade sustentável

O início do ano trouxe também o maior nível de chuvas da história da capital mineira. Foi o janeiro mais chuvoso da história de BH - mais da metade do que está previsto para o ano todo. A população da cidade teve que conviver com a destruição de áreas urbanas, enchentes, alagamentos e com o medo de viver na cidade. Para compreender um pouco mais sobre a situação geológica da cidade, conversamos com o professor Márcio Leão, que atua no curso.

 

Como cidades com o histórico de BH podem se preparar para o futuro de incertezas e extremos climáticos como o período de janeiro? Há algum tipo de compensação para os impactos da impermeabilização do solo, por exemplo?

Apesar de grandes investimentos em obras e infraestrutura hidráulica, como ampliação das calhas de grandes rios, ainda ocorre em grandes centros urbanos, como Belo Horizonte, episódios de enchentes que vitimam ou causam danos materiais. A impermeabilização do terreno nos centros urbanos proporciona maior escoamento superficial e menor capacidade de retenção da água pelo solo, impactando diretamente o sistema de drenagem que não está preparado para as solicitações impostas. Somam-se isso a excessiva canalização de córregos e o enorme assoreamento do sistema de drenagem por sedimentos, lixo, entulhos, etc. Desta forma, a solução, segundo a equação hidráulica seria aumentar a capacidade de vazão de toda a rede de drenagem ou aumentar a capacidade da cidade em reter boa parte de suas águas pluviais, reduzindo os volumes lançados nas drenagens. Aumentar a capacidade de drenagem resulta em grandes obras e de custo elevado construtivo e manutenção. Já no caso da segunda opção a solução em muitos centros urbanos veio por meio de piscinões, sendo obras de custo elevado de construção e manutenção (retirada de material de assoreamento produzido nas sub-bacias), além de acarretar em problemas ambientais (carregamento de águas contaminadas e lixo) e sanitários (proliferação de vetores e doenças). Soluções relacionadas ao aumento da capacidade do solo em reter água podem ser empregadas com medidas simples por exemplo: a construção de reservatórios domésticos e empresariais, calçadas e sarjetas drenantes, pátios e estacionamentos drenantes, bosques florestados em espaços urbanos, dentre outras. Essas são medidas não estruturais, que alinhadas ao rigoroso combate dos processos erosivos e lançamento irregular de lixo e entulho, são medidas indispensáveis para qualquer combate às enchentes. Cabe ressaltar, que a infiltração do solo é lenta a muito lenta, a depender do material geológico presente e a ação de retenção não pode depender apenas desse fato. Medidas como o armazenamento em reservatórios domésticos e industriais diminuem o volume de água escoada superficialmente pela chuva. Outra medida está relacionada ao armazenamento indireto, ou seja, a água da chuva infiltrada no solo acumula-se em camadas que compõem o substrato geológico das cidades, ou seja, as águas subterrâneas. Esta medida além de aumentar a capacidade de infiltração da cidade, alimenta os aquíferos subterrâneos, cuja água pode ser retirada por meio de poços. Há de se considerar é claro, os distintos graus de permeabilidade dos solos, do grau de compactação dos mesmos, de forma a melhor avaliar o volume de água que infiltra.

Um grande problema da engenharia geotécnica, não apenas em locais urbanizados, mas de grande ação prejudicial em cidades é o rebaixamento forçado do lençol freático, atingindo inclusive as vizinhanças. Esses rebaixamentos são executados com o objetivo de viabilizar ou facilitar ações construtivas associadas a estruturas subterrâneas situadas abaixo do nível natural do lençol freático. Os métodos são utilizados em função da constituição, da permeabilidade dos materiais geológicos presentes e da profundidade da escavação. Problemas como esse são especialmente comuns em terrenos de características geológicas aluvionares com presença de camadas de solos compressíveis mais argilosos e nível freático próximo à superfície. Com a retirada da água dos interstícios existentes entre os grãos que compõem o solo, o que implica uma redução das poro-pressões e aumento das tensões efetivas, há um natural “reacomodamento” interno dos constituintes granulométricos dos solos, levando a redução de seu volume e recalques em superfície e sub-superfície. Assim, tanto a impermeabilização dos terrenos das cidades como o rebaixamento do lençol freático são os principais fatores causadores da depleção de lençol freático em várias cidades brasileiras.

Podemos considerar a população de BH preparada para situações extremas como a que BH viveu no último mês de janeiro? E como a prefeitura deve agir em relação à áreas de risco como encostas e morros já ocupadas pela população? Há uma solução efetiva que pode ganhar escala, considerando o tamanho da população de BH e o número de moradores em risco?

Os desastres mais comuns estão relacionados a deslizamentos em encostas de média a alta declividade, ocupadas habitacionalmente, na maioria dos casos, por população de baixa renda, que avançam em terrenos de relevos acidentados nas grandes cidades. As causas são basicamente a total ausência de mecanismos mais efeitos de regulação técnica do crescimento urbano, a deficiência em programas habitacionais voltados aos cidadãos de baixa renda, ausência de adequação técnica e cultural em projetos desenvolvidos em terrenos de alta declividade e a deficiente fiscalização no cumprimento do Código Florestal. Além disso, são ocupadas áreas de risco pouco elevado, passíveis de receber urbanização, mas devido à inadequação técnica, que mesmo nas condições mais favoráveis são geradas situações de alto risco geotécnico, como é o caso de Belo Horizonte.

É importante ressaltar que a maioria dos acidentes e das áreas de risco instaladas nas cidades brasileiras ocorre em terrenos potencialmente urbanizáveis, mas cujo sucesso técnico e urbanístico exigiria a adoção de técnicas de projeto adequadas. Os deslizamentos representam exatamente isso, a natureza geológica procurando novas posições de equilíbrio. A forma inadequada de ocupação dos terrenos de alta declividade está representada pela construção de patamares planos devido a execução de sucessivos cortes e aterros, quando a adoção de lajes sobre pilotis seria mais adequada. Outro grande problema técnico e social é a ocupação de margens de córregos urbanos, situação esta por se tratar de edificações de baixíssima qualidade técnica, são comuns as destruições por solapamento em períodos de chuvas mais intensas.

De uma forma geral, os programas de habitação promovidos pelos governos estaduais e municipais geralmente são insuficientes quanto a sua correta concepção. A primeira questão trata da identificação, mapeamento e priorização da demanda habitacional a ser atendida, providência tão importante quando se tem consciência da escassez de recursos disponíveis para investimentos na área. Assim, famílias de baixa renda possuem poucos recursos para a construção de moradias de qualidade, gerando favelas, cortiços ou zonas periféricas de expansão urbana. A segunda premissa refere-se aos modelos urbanísticos e tecnologias construtivas que devam ser preferencialmente adotados para atender a referida demanda. A terceira premissa para orientação habitacional diz respeito a necessidade de compatibilização com as diretrizes maiores de planejamento urbano.

Além dos trágicos acidentes a enchentes e deslizamentos, outros problemas de natureza geológica podem ocorrer em meios urbanos: como o abatimento de terrenos, solapamento de cursos de rios, de obras subterrâneas e superficiais, patologias diversas nas fundações das obras civis, contaminação dos solos, etc. A principal ferramenta para o acerto das relações técnicas da cidade com o seu meio físico geológico e hidrogeológico é a Carta Geotécnica. Ela é um documento cartográfico que informa sobre o comportamento dos diferentes compartimentos geológicos e geomorfológicos homogêneos de uma área frente às solicitações típicas de um determinado tipo de intervenção, como a urbanização, indicando as melhores opções técnicas para que essa intervenção se dê com pleno sucesso técnico e econômico. A Carta Geotécnica se destaca por ser uma ferramenta de caráter preventivo e de planejamento, fornecendo as informações necessárias e indispensáveis à não ocupação de áreas com alta potencialidade natural a eventos geotécnicos e hidrológicos de caráter destrutivo. Orienta ainda as concepções urbanísticas e as técnicas construtivas mais adequadas para ocupações em áreas com restrições geológicas, mas potencialmente urbanizáveis. Reforçando esta preocupação, diversas legislações, como a Lei Federal n°12.608, o Estatuto das Cidades e até Planos Diretores, vê, estabelecendo a elaboração de providências obrigatórias para os municípios brasileiros.

Como conciliar crescimento e preservação ambiental? Quais os principais pontos do desenvolvimento urbano sustentável e da correta ocupação e uso do solo?

As cidades constituem a mais radical intervenção modificadora antrópica no meio físico natural, compondo um novo e particular ambiente, total e inexoravelmente diverso do ambiente natural. Nessa condição abrigam hoje como moradores e usuários perto de 80% da população mundial. Essa grande intervenção do homem impõe um conjunto de modificações severas ao meio físico, como por exemplo, eliminação da vegetação natural, desequilíbrios geotécnicos impostos por escavações, cortes, aterros e obras subterrâneas, sobrecargas por aterramentos e fundações concentradas e difusas, impermeabilização dos terrenos com aumento do escoamento superficial e redução da infiltração de águas pluviais, completa subversão do sistema de drenagem superficial, exposição de solos à erosão, disposição de resíduos inertes, não inertes e perigosos, lançamento de efluentes industriais tóxicos, alterações climáticas locais, dentre outras. Por outro lado, requer deste mesmo meio físico geológico uma série de insumos: disponibilidade de áreas para crescimento urbano, agregados para construção civil (areia, argila, brita, para aterro), água superficial e subterrânea, terras para produção agrícola, áreas para lazer e funções ambientais, áreas para disposição de resíduos e locação de cemitérios, áreas especiais para instalação de aeroportos, portos, distritos industriais, etc.

Cabe ressaltar que os projetos de engenharia devem ser adequados aos condicionantes locais, do contrário ainda serão observados problemas relacionados a erosão/assoreamento/enchentes, deslizamentos de encostas naturais e taludes de corte, recalques e abatimentos de terrenos, produção maciça de área de risco, etc. Desta forma, será a concepção arquitetônica que determinará o fracasso ou êxito do empreendimento em relação com o ambiente geológico-geotécnico e sua sustentabilidade ambiental. Procedimentos de terraplenagem em áreas geológico-geotecnicamente instáveis resultam em deslizamentos, exposição de solos mais profundos susceptíveis a erosão em cortes, aterros e bota-foras, assoreamento de drenagens e favorecimento de enchentes. Desta forma, os projetos de engenharia devem buscar soluções que sejam compatíveis com os condicionantes geológico-geotécnicos existentes.

Outra questão preocupante é a proteção de nascentes em áreas urbanas e periurbanas, que deve obedecer a regimentos contidos no Código Florestal, tendo em vista a relação delas com o nível freático. As boçorocas são terríveis feições erosivas responsáveis por graves problemas urbanos e rurais, incluindo o assoreamento de drenagens. Têm essencialmente origem antrópica, ou por desorganização/concentração de drenagens superficiais, ou desmatamento generalizado. A nascente produzida por uma boçoroca implica no sangramento do lençol freático e seu respectivamente rebaixamento em sua área próxima. Outro exemplo de uma nascente antrópica são as escavações vinculadas as atividades de mineração, ou terraplanagem para instalação de uma obra civil, ou a uma simples área de empréstimo, muitas vezes atinge o nível freático, o que implica a instalação de uma surgência não natural do freático. Em áreas urbanas e periurbanas essas surgências induzidas, além de graves problemas geotécnicos associados, acabam por retirar uma considerável quantidade das reservas estratégicas de água subterrânea de ótima qualidade e lançá-las, por exemplo, em um córrego poluído. Um projeto de sucesso ao tratamento deste problema em áreas urbanas, está o tamponamento com entulho inerte de construção civil de uma grande ravina em Belo Horizonte (MG), na rua Sebastião de Menezes no Bairro Ouro Preto. Houve o estancamento do processo de avanço da boçoroca, ocupando utilmente o local com entulho inerte da construção e recuperou a área para o devido aproveitamento urbano.

Com base no contexto apresentado, relacionados ao rebaixamento da qualidade ambiental de vida nos centros urbanos e os trágicos acontecimentos, especialmente aqueles que se expandem em áreas topograficamente acidentadas e geologicamente sensíveis torna-se fundamental a aplicação do Código Florestal. Deslizamentos e processos erosivos geram riscos geológicos-geotécnicos principalmente em áreas de encostas se comparadas a ao topo das elevações topográficas. Essa qualidade geotécnica das áreas de topo de morro deve-se a formação de solos mais espessos e evoluídos (mais resistentes à erosão) e inexistência de esforços relativos a ação da gravidade. O contrário ocorre em encostas de alta declividade, instáveis por natureza e palco comum das recorrentes tragédias geotécnicas. Esse aspecto geológico-geotécnico sugere que dentro de certas regras ambientais da expansão urbana, possa ser liberada a partir de avaliações técnicas a ocupação do topo de morros e restrições às encostas. Assim, fica a imperativa necessidade de produção de uma legislação ambiental especificamente voltada à realidade urbana brasileira, que considere as dinâmicas próprias do espaço urbano, seja capaz de contemplar e assegurar os atributos ambientais indispensáveis à qualidade de vida dos cidadãos.

 

Caminhos para a sustentabilidade

Segundo a professora Lúcia Karine de Almeida, que atua nos cursos de graduação em Arquitetura e de pós-graduação em Planejamento Ambiental Urbano e Produção Social do Espaço, além da concentração demográfica, são comuns nas grandes cidades problemas decorrentes da concentração das atividades em áreas centrais e ao longo de poucos corredores de transporte, da verticalização, da especulação imobiliária e do adensamento residencial em regiões onde a infraestrutura existente não é capaz de suportar o número de habitantes e suas necessidades“.

O desafio, portanto, é pensar a realidade dos centros urbanos a partir de premissas como sustentabilidade, diversidade e do direito que todos os indivíduos têm à cidade. “Não há como pensar em desenvolvimento sem o mínimo de planejamento das funções espaciais do território. O sucesso desse modelo é reflexo de um pensamento harmônico baseado no entendimento do contexto regional ambiental. Nesta linha, o enfrentamento dos grandes problemas urbanos, principais causadores dos grandes impactos ambientais em rede, deveria fazer parte da agenda de todo governo”, afirma a professora Lúcia, que também atua na Subsecretaria de Planejamento Urbano (Suplan), da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.

A professora Lúcia Karine constata que a rotina de Erick é comum à maioria dos moradores que enfrentam as contradições da realidade urbana brasileira. “A área urbana central e planejada de Belo Horizonte se expandiu de forma desordenada e, desde o início, concentra funções urbanas e causa impactos significativos em todo o território do município por abrigar a maior rede de comércios e serviços, empregos, demandar grandes deslocamentos e também por suprir demandas metropolitanas”, esclarece.

A capital mineira, que teve a população estimada pelo IBGE, no ano de 2019, em 2.512.070 habitantes tem um novo Plano Diretor (lei municipal nº 11.181).A lei, que entrou em vigor no dia 05 de fevereiro, propõe diretrizes estruturantes para elaboração, implementação e gestão das políticas públicas em curto, médio e longo prazos. No escopo do Plano estão definidas as diretrizes da política de desenvolvimento urbano municipal, além do Plano de Mobilidade Urbana (PlanMob) e as regras de parcelamento, uso e ocupação do solo. O modelo que será implementado nos próximos anos defende, portanto, uma rede de centros e centralidades urbanas locais e regionais e a existência de estrutura de acesso a comércio, serviços, oportunidades de trabalho e emprego, bem como a equipamentos de lazer e áreas verdes.

Entre as propostas e objetivos do Plano Diretor de BH está a ideia de reversão da dispersão da ocupação urbana no território, substituindo-a por um modelo de “cidade compacta”, onde a estrutura urbana disponível é utilizada de modo mais eficiente e racional, priorizando efeitos positivos para o meio ambiente, para a mobilidade urbana, para o desenvolvimento econômico e, de modo geral, para o bem-estar dos cidadãos. “A promoção das centralidades permitirá a diminuição da excessiva dependência do uso do automóvel e mesmo do transporte coletivo, estabelecendo a proximidade como principal estratégia de reversão da crise de mobilidade urbana que se estabeleceu nas grandes cidades”, explica. A intenção é priorizar os modos não motorizados de transporte, mediante a criação e a qualificação de espaços públicos com foco no caminhamento de pedestres e bicicletas. “Todo plano diretor deve ser fruto da reflexão coletiva sobre o passado, presente e futuro do município, pensado de forma integrada, constante, avaliando suas potencialidades e desafios sob a ótica das diversas especificidades físicas e ambientais, de infraestrutura, de uso e ocupação do solo, da rede de fluxos de gente e mercadorias, bem como das questões socioeconômicas e culturais”, destaca a professora e arquiteta Lúcia Karine.

Boletim produzido pela Assessoria de Comunicação da Diretoria de Educação Continuada da PUC Minas

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